As Ilusões do pós-modernismo




descargar 0.49 Mb.
títuloAs Ilusões do pós-modernismo
página1/14
fecha de publicación26.02.2016
tamaño0.49 Mb.
tipoDocumentos
b.se-todo.com > Documentos > Documentos
  1   2   3   4   5   6   7   8   9   ...   14




Terry Eagleton

As Ilusões do pós-modernismo
Tradução: Elisabeth Barbosa


Para Willa
Título original: The Illusions of Postmodernism

Tradução da primeira edição inglesa publicada em 1996 por Blackwell Publishers, de Oxford, Inglaterra
Sumário

Prefácio 1

1. Primórdios 2

2. ambivalências 9

3. Histórias 16

4. Sujeitos 25

5. Falácias 32

6. Contradições 45

Notas 46

Prefácio
A palavra pós-modernismo refere-se em geral a uma forma de cultura contemporânea, enquanto o termo pós-modernidade alude a um perío­do histórico específico. Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a idéia de progresso ou emancipação universal, os siste­mas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um con­junto de culturas ou interpretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de identidades. Essa maneira de ver, como sustentam alguns, baseia-se em circunstân­cias concretas: ela emerge da mudança histórica ocorrida no Ocidente para uma nova forma de capitalismo — para o mundo efêmero e descentralizado da tecnologia, do consumismo e da indústria cultural, no qual as indústrias de serviços, finanças e informação triunfam sobre a produção tradicional, e a política clássica de classes cede terreno a uma série difusa de "políticas de identidade". Pós-modernismo é um estilo de cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as fronteiras entre a cultura "elitista" e a cultura "popular", bem como entre a arte e a experiência cotidiana. O quão dominante ou disseminada se mostra essa cultura — se tem acolhimento geral ou constitui apenas um campo restrito da vida contemporânea — é objeto de controvérsia.

Embora essa distinção entre pós-modernismo e pós-modernidade me pareça útil, não lhe dediquei especial atenção neste livro. Optei por adotar o termo mais trivial "pós-modernismo" para abranger as duas coisas, dada a evidente e estreita relação entre elas. Como aqui interessam-me mais as idéias do que a cultura artística, não me detenho em obras de arte isoladas. Tampouco analiso teóricos específicos, o que pode causar estranheza a alguns. Minha preocupação reside menos nas formulações rebuscadas da filosofia pós-moderna do que na cul­tura, no meio ou mesmo no modo de ver e reagir do pós-modernismo. Tenho em mente menos os vôos filosóficos mais elevados sobre o assunto do que aquilo em que um tipo específico de aluno provavel­mente acredita hoje; e embora considere muitas das coisas que eles crêem falsas, tentei dizer isso de uma forma tal que pudesse conven­cê-los de que não era assim que pensavam originalmente. Ao fazê-lo, acuso vez por outra o pós-modernismo de fabricar alvos imaginários, de caricaturar as posições de seus adversários, acusação esta que bem poderia retirar por conta própria. Mas isto se dá, em parte, porque aspiro precisamente a essas marcas "populares" do pensamento pós-moderno, e, em parte, porque o pós-modernismo constitui um fenô­meno tão híbrido, que qualquer afirmação sobre um aspecto dele quase com certeza não se aplicará a outro. Portanto, pode acontecer de um determinado teórico haver, em sua obra, questionado ou mesmo rejei­tado algumas das visões que atribuo ao pós-modernismo de um modo geral; todavia, elas constituem um tipo de sabedoria reconhecida, e nesse sentido não me considero culpado de paródia excessiva. Ao contrário, embora predomine uma análise negativa do tema, tentei admitir o lado bom do pós-modernismo sempre que possível, chaman­do atenção tanto para seus pontos fortes como para os fracos. Não se trata apenas de se posicionar a favor ou contra o pós-modernismo, conquanto, na minha opinião, haja mais motivos para se opor a ele do que para apoiá-lo. Da mesma forma que se dizer "pós-modernista" não significa unicamente que você abandonou de vez o modernismo, mas que o percorreu à exaustão até atingir uma posição ainda profun­damente marcada por ele, deve haver algo como um pré-pós-modernismo, que percorreu todo o pós-modernismo e acabou mais ou menos no ponto de partida, o que de modo algum não significa que não tenha havido mudanças.

Parte da força do pós-modernismo resulta do fato de que ele existe, ainda que, no que tange ao socialismo nos dias de hoje, tal afirmativa se afigure bem mais questionável. Com a devida vênia a Hegel, pareceria agora que o real é irracional, e o racional, irreal. Ao longo deste estudo, julguei o pós-modernismo sob uma ótica abertamente socialista; o que não quer dizer, por certo, que o socialismo também não tenha seus problemas. Ao contrário, esta idéia revela-se hoje provavelmente mais importuna e especulativa que em qualquer outro estágio de sua turbulenta carreira. Seria desonestidade intelectual fingir que o marxismo não representa mais uma realidade política atuante, ou que as perspectivas de mudança socialista, pelo menos neste mo­mento, não passam de remotíssimas. Ocorre que, nestas circunstâncias, seria bem mais prejudicial que desonesto renunciar à visão de uma sociedade justa e, dessa forma, aquiescer à desordem pavorosa em que se encontra o mundo atual. Não estou propondo, portanto, que tenha­mos à mão uma alternativa pronta para o pós-modernismo, mas apenas que podemos fazer muito melhor; e não é preciso ser um socialista convicto, muito menos um marxista devoto, para conceder nisso.

Uma palavra, enfim, que sirva de consolo aos adversários. Tentei criticar o pós-modernismo sob o aspecto político e teórico, em vez de simplesmente apelar ao senso comum. No entanto, parece-me inevitá­vel que conservadores que invectivam o pós-modernismo por razões que considero as mais indignas endossem alguns dos meus argumentos. Os radicais e os conservadores, afinal de contas, necessariamente compartilham um terreno comum, caso contrário haveria entre eles um conflito sobremaneira mais grave. Os radicais, por exemplo, são tradicionalistas, assim como os conservadores; o que os distingue é que eles aderem a tradições inteiramente diferentes. Conviria àqueles pós-modernistas que sustentam que os radicais devem abster-se de criticar uns aos outros para não acirrar o ânimo dos reacionários lembrar as limitações de uma política baseada mais no oportunismo que na verdade, por mais que prefiram o último termo posto entre alarmantes aspas. Se, com efeito, os leitores conservadores se virem apoiando sinceramente a transformação socialista da sociedade depois de lerem este livro, ficarei muito satisfeito.

O aspecto mais pós-modernista deste livro consiste no seu desca­rado plágio de si mesmo. Embora a maior parte do texto seja original, vali-me de alguns escritos anteriores de minha autoria, que foram publicados nas revistas London Review of Books, The Times Literary Supplement, The Monthly Review, Textual Practice e The Socialist Register. Devo agradecer aos editores dessas publicações a gentil permissão de republicá-los, e espero que nenhum leitor assine todas elas. Dedico também profunda gratidão a Peter Dews e Peter Osborne, que tiveram a generosidade de ler este livro na forma de manuscrito e deram sugestões indiscutivelmente úteis.
T.E.



  1. Primórdios


Imagine um movimento radical que tenha sofrido uma derrota estron­dosa. Tão estrondosa, de fato, que parecia improvável que saísse do ostracismo antes do decurso de uma vida, quando muito. A derrota que me ocorre não se resume ao desprezo tão tristemente familiar à esquerda política, e sim representa uma repulsa de tal modo definitiva, que pareceu desacreditar até mesmo os paradigmas que essa política tradicionalmente cultivou. Seria, agora, menos uma questão de com­bater com severidade essas noções do que de contemplá-las com um pouco do interesse benévolo dos antiquários com que se deve tratar a cosmologia ptolemaica ou a escolástica de Duns Scotus. Essas noções já não pareceriam estar em conflito atroz com a linguagem da socie­dade convencional, pois nesse ponto simplesmente não haveria mais termos de comparação — discursos de planetas diferentes e não de nações adjacentes. Que aconteceria se, de uma hora para outra, a esquerda, em vez de se sentir oprimida ou frustrada, se visse simples­mente extinta, dona de um discurso de tal forma desarmônico com os tempos modernos que, assim como com a linguagem do gnosticismo ou do amor cortês, ninguém mais se daria ao trabalho de investigar sua exatidão? Que aconteceria se a vanguarda viesse a tornar-se o remanescente, seus argumentos ainda pouco inteligíveis ecoando em algum espaço interplanetário metafísico onde iriam acabar como um mero grito abafado?

Como se espera que a esquerda política reagisse a uma derrota desse tipo?

Muitos, sem dúvida, por ceticismo ou boa-fé, descambariam para a direita, arrependendo-se de suas idéias passadas e reputando-as idealismo infantil. Outros manteriam a fé por hábito ou nostalgia, aferrando-se a uma identidade ilusória e correndo o risco da neurose que dela pode advir. Existem, afinal, aqueles devotos para quem nada neste mundo serve para desvirtuar suas crenças — aqueles cristãos, por exemplo, que, fiéis ao que os doutores da ciência chamam de "subdeterminação de dados pela teoria", continuariam a reunir-se sorridentes em torno da mesa eucarística, mesmo depois de todo o mundo já ter se dado conta de que os evangelhos são fraudulentos do início ao fim. Com efeito, existem hoje membros da Igreja Anglicana se comportando mais ou menos assim. Mas também se poderia esperar outras reações. Um pequeno bando de triunfalistas da esquerda, oti­mistas incuráveis, com certeza seguiria detectando sinais iminentes de revolução na mais leve sombra de militância. Há aqueles em que o impulso radical persistiria, mas seria forçado a mudar de direção. Numa época assim, imagina-se, predominaria a crença da inviolabili­dade natural do sistema; e um grande número de posições radicais aparentemente desconexas nasceria desse pressuposto sombrio.

Seria de se esperar, por exemplo, um surto de interesse nas margens e lacunas do sistema — naqueles pontos ambíguos, indeterminados em que seu poder parecia menos implacável, as margens obscuras por onde ele se foi consumindo até o silêncio. O sistema não podia ser violado; mas podia ao menos ser momentaneamente transgredido, esquadrinhado em busca dos pontos nevrálgicos em que sua autoridade vacilava e se dissolvia. Atraídos por essas falhas, talvez até chegásse­mos à conclusão de que não há centro para a sociedade; mas, ao mesmo tempo que teríamos aí um meio conveniente de racionalizar a nossa impotência, isso só faria sentido à custa de admitirmos que tampouco pode haver margens. Seria de se esperar que esse próprio fato tenha sido preconcebido para a teoria — que uma consciência desesperada do conluio entre o centro e as margens, poder e ruptura, do jogo furtivo de gato e rato que fazem entre si, estaria fatalmente associada com a afirmação perturbadora de tudo que o próprio sistema expeliu sob a forma de tanto detrito, de tudo que sua racionalidade dominante parecia não incorporar. Seria possível entrever muita cele­bração das margens e das minorias como sendo positivas por si sós — ponto de vista de todo absurdo, evidentemente, visto que as margens e as minorias incluem hoje em dia os neonazistas, os ufomaníacos, a burguesia internacional e aqueles que acreditam na eficácia de espancar adolescentes delinqüentes até o sangue correr. A idéia de um movi­mento majoritário criativo, tanto para essa mentalidade como para o liberalismo à moda antiga de John Stuart Mill, daria impressão de paradoxo, justo porque essa linha de pensamento, providencialmente amnésica, seria incapaz de evocar um exemplo de sistema beneficiador ou de movimento de massa convidativo. Levado ao extremo, um caso desses teria dificuldade em aceitar uma corrente que deixou de ser marginal para se tornar politicamente dominante (o Congresso Nacio­nal Africano, por exemplo), dado o preconceito formalista contra a "dominância" em si. Pela lógica, ela jamais poderia esperar que seus valores chegassem ao poder. As próprias idéias de sistema, consenso e organização acabariam estigmatizadas de uma maneira meio anar­quista, tachadas de prejudiciais por aqueles comprometidos com um relativismo tolerante.

A base histórica dessa crença reside na falência temporária dos movimentos políticos concomitantemente de massa, de centro e pro­dutivos; mas tal fato não basta para que uma análise do ponto de vista histórico proceda à generalização que transforma essa crença em doutrina universal. Adotariam essa teoria os que eram jovens demais para lembrar de uma política de massa radical, mas que tiveram suficientes experiências desastrosas e funestas com as maiorias opres­sivas. Também se poderia desvalorizar indiscriminadamente as noções de lei e autoridade, como se não existisse esse negócio de lei de proteção ou de autoridade benigna. Teóricos ridicularizariam a insa­nidade da Lei nos enclaves burgueses protegidos por guardas de segurança particulares, festejando a transgressão por considerá-la boa por si só quando se preocupa com o abuso infantil. Ainda haveria a possibilidade de protesto; mas como o sistema logo se acomodaria à existência desse transtorno, a reação radical estaria dividida de acordo — entre um pessimismo precário, por um lado, e uma visão entusias­mada da diferença, mobilidade e ruptura constantes, por outro. A distância entre tudo isso e o deprimente mundo circunscrito da vida social e econômica sem dúvida pesaria muito; mas essa lacuna poderia estreitar-se se prestássemos atenção nesses poucos enclaves sobrevi­ventes onde coisas desse tipo ainda têm vez, onde ainda se pode saborear um prazer ou diversão não totalmente submissos ao poder. A linguagem e a sexualidade seriam os primeiros candidatos a esse papel, permitindo-nos antever o aumento descomunal do interesse em tais assuntos no período em questão. Palestras intituladas "Restituindo o ânus a Coriolanus" atrairiam hordas de acólitos excitados, pouco versados em burguesia mas muito em sodomia. A divisão entre pes­simismo e euforia, no entanto, reapareceria aqui também: alguns pensadores alertariam para o quanto o discurso e a sexualidade estavam sendo policiados, regulados, carregados de poder, enquanto outros continuariam a sonhar com um símbolo liberado ou com uma sexua­lidade desimpedida. Não se abandonaria o impulso radical; mas ele mudaria gradualmente do transformativo para o subversivo, e ninguém além dos anunciantes falaria mais de revolução. O entusiasmo da fase anterior mais promissora do radicalismo sobreviveria, mas agora se misturaria com o pragmatismo calejado de seu resultado desiludido, para dar à luz um novo tipo de ideologia de esquerda, que se poderia chamar de pessimismo libertário. Continuaríamos a sonhar com outro utopista para o sistema, na verdade para todo o conceito de sistema ou regime como tal, sem jamais deixarmos de insistir na recalcitrância do poder, na fragilidade do ego, na força devoradora do capital, na insaciabilidade do desejo, na inevitabilidade do metafísico, na inven­cibilidade da Lei, nos efeitos imprevisíveis da ação política e também na total facilidade de burlar-nos em nossas esperanças mais secretas. O sonho de libertação persistiria, por mais que se zombasse da inge­nuidade daqueles tolos o bastante para acreditar na sua viabilidade. Não seria de todo impossível topar com pessoas que desejaram ver a Época do Homem perecer e votaram no partido liberal-democrático.

Existem outras razões para prevermos o culto da ambigüidade e da indeterminação nessas circunstâncias. Em certas nações altamente empresariais, em que se emprega o termo "agressivo" como elogio e se considera falha moral sentir-se pessimista em relação a algo, os conceitos de hesitação, negatividade, insolubilidade e congêneres po­dem ganhar vulto, figurando como o maior exemplo de radicalismo desde a Longa Marcha. Mas também é verdade que o interesse pelo conhecimento rigoroso, determinado, diminui bastante quando uma autêntica transformação política parece fora de questão. Não há sentido em continuar trabalhando a duras penas no Museu Britânico, consu­mindo montes de teoria econômica indigesta, se o sistema mostra-se simplesmente inexpugnável. Uma das narrativas mais patéticas da história moderna relata como homens e mulheres vítimas de vários tipos de opressão vieram a adquirir, em geral à custa de muito sacrifício pessoal, o tipo de conhecimento técnico necessário para uma com­preensão mais profunda de sua própria condição e, conseqüentemente, para a conquista de um pouco do arsenal teórico indispensável para mudá-la. Soa como uma afronta informar essas pessoas de que, na metáfora econômica da vida intelectual hoje dominante nos EUA, elas estão se tornando meras acionistas das clausuras (closures) conceituais de seus mestres, ou se mancomunando com o falocentrismo. Os que gozam do privilégio de não precisar saber, para quem politicamente nada está em jogo no conhecimento racional e preciso, pouco têm a perder ao exaltar as virtudes da insolubilidade. Não há motivos por que os críticos literários não deveriam voltar-se para a autobiografia ou para o anedotalismo, ou simplesmente fatiar seus textos e entregá-los ao seu editor numa caixa de papelão, se não assumem uma posição política de forma a precisar de um conhecimento emancipatório.

Se se reputa o sistema todo-poderoso, ponto de vista que ignora o fato de que ele possui uma riqueza formidável de recursos ao mesmo tempo que representa um fracasso retumbante, então a oposição só pode partir de fora dele. No entanto, sendo ele realmente todo-pode­roso, por definição nada pode existir além dele tanto quanto nada pode existir além da curvatura infinita do espaço cósmico. Se o sistema está em toda parte, isto significa que, assim como o verdadeiro Todo-po­deroso, ele não aparece em nenhum ponto específico, ou seja, é invisível, e, nessa condição, pode-se alegar que não se trata de sistema coisa nenhuma. O pansistêmico pode transformar-se, com um pequeno empurrão, no anti-sistêmico. Há uma linha tênue entre sustentar a impraticabilidade de representar a totalidade e afirmar sua inexistência. Talvez esta afirmativa queira dizer, presume-se, que não existe mais o tipo clássico e "centrado" de sistema; mas aqueles vanguardistas que insistiam em definir o sistema em si dessa maneira simpaticamente antiquada poderiam chegar à conclusão natural de que ele evaporou de vez. Mesmo se ele existiu, e mesmo tendo existido alguma coisa fora dele, fosse o que fosse, ela se constituiria menos uma oposição que algo impossível de se comparar, incapaz de exercer qualquer poder sobre o próprio sistema. Se se trouxesse uma força assim para dentro da órbita do sistema com o fito de desafiá-lo, sua não identidade se contaminaria no mesmo instante e seu poder subversivo minguaria para o nada. Aquilo que nega o sistema na teoria o faz devido à sua incapacidade de negá-lo na prática. É bem provável que haja alguma alteridade para tudo que temos, sem dúvida ela deve estar roçando nossa pele e escorrendo pelos nossos dedos neste exato momento; mas somos impotentes para nomeá-la, visto que isto implica já a havermos suprimido. Tudo aquilo que pudéssemos compreender só seria assi­milado através de uma cumplicidade com a nossa lógica degradada, e por conseguinte incapaz de nos salvar, enquanto o exótico ou subversivo de verdade fugiria completamente aos nossos modelos de representação e soaria tão fútil quanto o misterioso númeno de Kant.

Seria de se esperar, portanto, que um período político assim estivesse bem fornido de várias correntes de pseudomisticismo, sedu­zido por tudo que permita escapar do conceito, enfeitiçado por aqueles espasmos da mente que confundem suas classificações costumeiras, que criam em nós um certo estado extático de indeterminação em que se transcende a fronteira entre identidade e não-identidade (ainda que não pudéssemos saber disso, evidentemente), e o impasse lógico que acabei de descrever se dissolve em vez de se resolver. Esse "pensa­mento" se revelaria ao mesmo tempo utópico ao extremo, lutando para vencer as limitações da linguagem a fim de vislumbrar algum estado ainda incompreendido além dela, e um fantástico desvio do impasse político genuíno. Numa ambivalência interessante, não nos admiraría­mos de encontrar certos radicais denunciando uma totalidade que eles tomaram por real, e outros descartando a questão por considerá-la uma quimera do cérebro exaltado e compulsivamente totalizante. Alguns, poderíamos vaticinar, presumiriam que o sistema dominante é negativo por inteiro — que nada dentro desse todo perfeitamente não-contraditório poderia por definição ter serventia —, e se afastariam dele por covardia para idealizar algum Outro numênico. Esse culto sem dúvida faria par com uma autodilaceração culpada por parte de alguns rebentos do primeiro mundo que ansiariam por ser qualquer outra pessoa que não eles próprios. Poderíamos prever um grande surto de interesse por tudo que se mostrasse alienígena, fora dos padrões, exótico, inassimilável. Talvez houvesse um aumento de curiosidade pelos animais irracionais; ou talvez os teóricos radicais estivessem tentando feito loucos se comunicar com porcos-da-terra ou com os habitantes de Alfa Centauro, na esperança, é claro, de que seus contatos permanecessem devidamente ininteligíveis.

Outros pensadores, menos ultra-esquerdistas românticos, sem dú­vida se esforçariam para inventar uma nova versão para a noção clássica de "crítica imanente", convencidos de que ela existia dentro da lógica do sistema que, escancarado e explorado de uma determinada maneira, poderia servir de instrumento para miná-la. Segundo a noção tradicional de crítica imanente, o fantasma de um futuro político alternativo esvazia o sistema justo nesses pontos em que ele não coincide na estrutura consigo próprio, desconstruindo dessa forma a distinção entre "dentro" e "fora". Assim como existem maneiras de seguir regras que acabam por transformá-las, ou em que as regras lhe insinuam quando livrar-se delas, o mesmo ocorre dentro de qualquer sistema que inscreve sua diversidade na sua interioridade. Poderíamos redefinir esse conceito anacrônico da crítica imanente como, digamos, uma "desconstrução". Isto, porém, revestido dos novos modismos, invariavelmente não passaria de uma escaramuça estratégica ou de uma subversão efêmera, um rápido assalto de guerrilha à fortaleza da Razão, uma vez que para ela tornar-se sistêmica significaria tornar-se vítima da própria lógica que ela questionou. Seria uma crítica gerida mais no nível mental que no nível de forças políticas; com efeito, deveríamos interpretá-la, em parte, como esse exato desvio. Tratar-se-ia de uma forma dadaísta de política, devota do gesto dissidente, da recusa iconoclástica, do acontecimento inexplicável. Se nesse ponto fôssemos exumar um momentoso teórico da carnavalização, um que festejasse uma ruptura esporádica de todo incapaz de desmantelar a Lei que parodiava, adivinharíamos sem erro que ele de pronto daria à luz uma grande indústria acadêmica. O grotesco se constituiria a moda, enquanto os monstros e o masoquismo disparariam na bolsa de valores intelectual.

Por trás dessa linha de pensamento se ocultaria a suposição da idéia de sistema criativo como oxímoro e da noção de anti-sistema criativo como tautologia. E, por trás disso, por sua vez, residiria o fato histórico de que haveria muitíssimo poucos exemplos de sistema político criativo disponíveis no mercado. Não fosse assim, poderíamos sem esforço imaginar todo esse estilo de pensamento transfigurado de uma hora para outra. Se seus expoentes houvessem pertencido a um período histórico diferente — digamos, no advento tumultuado de uma forma nova e inspiradora de vida social —, quase com certeza eles teriam descartado muitas das doutrinas que preservaram. Enquanto permanece em ebulição um movimento de massa radical, não é difícil invalidar uma oposição binária simplista entre o Sistema e seus Outros, o primeiro convertido em demônio e o segundo em anjo, uma vez que esses "outros" não passam de produtos óbvios do próprio sistema, e se sabem como tal. E é justamente porque exercem um papel até certo ponto crucial nele que têm o poder de mudá-lo. Mas também fica mais fácil afastar a idéia de que essa crítica imanente só pode ser espasmódica, tática, ou uma questão minoritária. Pois se evidenciaria que existem sistemas contraditórios, formas de vida bastante alternativas em conflito umas com as outras; e que qualquer distinção formalista entre "sistema", por um lado, e "dissenso", por outro, é simplesmente implausível. Aqueles que esquadrinham em busca de uma força apro­priada para combater "o sistema" em geral não passam de autênticos monistas engalanados
  1   2   3   4   5   6   7   8   9   ...   14

similar:

As Ilusões do pós-modernismo iconLa posizione della Chiesa contro IL modernismo

As Ilusões do pós-modernismo iconCompetencia escribe diferentes textos según las características de...

As Ilusões do pós-modernismo iconManual do pós-graduando

As Ilusões do pós-modernismo iconPrograma de Pós-graduação em Direito

As Ilusões do pós-modernismo iconPrograma de pós-graduaçÃo em direito

As Ilusões do pós-modernismo iconPrograma de pos-graduaçÃo em história

As Ilusões do pós-modernismo iconPrograma de pós-graduaçÃo em botânica

As Ilusões do pós-modernismo iconAccion de tutela para ordenar suministro de medicamentos, examenes...

As Ilusões do pós-modernismo iconSantos, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição...

As Ilusões do pós-modernismo iconPpgd ufba – programa de pós-graduaçÃo em direito ufba




Todos los derechos reservados. Copyright © 2019
contactos
b.se-todo.com