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![]() A Biblioteca Desaparecida - Histórias da Biblioteca de Alexandria – Luciano Canfora Tradução: FEDERICO CAROTTI 1986 Companhia Das Letras A grande biblioteca de Alexandria, fundada por Ptolomeu Filadelfo no início do século III a.C., é para nossa cultura mito e modelo. Foi com ela que o livro, até então mero instrumento auxiliar do ensino oral, foi promovido a objeto de autoridade e prestígio, valioso em si. Somente em Alexandria saber e livro se tornariam sinônimos. A história da biblioteca alexandrina, que existiu por mais de mil anos, porém, é ainda hoje obscura, não por falta de dados, mas, ao contrário, pelo excesso de fontes contraditórias. Até mesmo os documentos relativos à sua destruição, que a tradição sustenta ser obra dos árabes, no século VII d.C., dão margem a dúvidas. Mais do que uma história sistemática, A Biblioteca Desaparecida é a análise de inúmeros mistérios ligados a uma enorme coleção de livros, histórias de volumes perdidos e reencontrados, de furtos e falsificações, brigas entre bibliotecários e disputas entre colecionadores. Através desse mosaico de acontecimentos delineia-se pouco a pouco a imagem de uma cultura que fez da conservação do passado seu principal dever e que, graças ao empenho de gerações de estudiosos, conseguiu reconstruir o pensamento de Aristóteles (que em vida publicara apenas alguns diálogos secundários); traduzir a Bíblia para o grego, divulgando-a em todo o Ocidente; preparar edições dos poetas gregos — ainda hoje a base do nosso conhecimento do mundo clássico —, mas que, em sua tentativa de unificar e tornar universalmente conhecidos todos os livros do mundo, foi constantemente frustrada pelas recorrentes destruições. Tendo por base um sólido trabalho filológico, que lhe permite dominar um campo extremamente vasto de pesquisa, Canfora contrapõe à narração história a análise das fontes. Desse procedimento resulta um livro que é, como era costume em Alexandria, criação original e resumo de infinitos livros. ![]() Ptolomeu Filadelfo quer reunir todos os livros do mundo; o califa Omar pretende queimá-los todos, salvo o Corão. Entre esses dois sonhos, nasceu e foi destruída a monumental biblioteca de Alexandria, cidade que por mais de mil anos serviu de capital cultural do Ocidente. Para narrar a história dessa imensa coleção de livros, Luciano Canfora retoma uma antiga técnica dos bibliotecários de Ptolomeu: a montagem e a reescritura das fontes, fundidas numa prosa aparentemente romanceada, mas na realidade baseada, quase frase por frase, em textos antigos. A história da maior biblioteca do mundo se confunde assim com a história dos livros que acumulou e dos livros que a descreveram — como uma última crônica de um erudito bibliotecário de Alexandria. Nunc adeamus bibliothecam, non illam quidem multis instructam libris, sed exquisitis. Agora chegamos à biblioteca, não aquela composta de muitos livros, mas de livros escolhidos. Erasmo ÍNDICE I. A tumba do faraó....................... 9 II. A biblioteca sagrada..................... 13 III. A cidade proibida....................... 17 IV. O fugitivo............................. 20 V. A biblioteca universal................... 24 VI. "Deixo os livros para Neleu"............. 29 VII. O banquete dos sábios................... 33 VIII. Na gaiola das musas..................... 39 IX. A biblioteca rival....................... 46 X. Aristóteles reaparece, e se perde........... 52 XI. O segundo visitante..................... 58 XII. A guerra.............................. 64 XIII. O terceiro visitante...................... 69 XIV. A biblioteca........................... 74 XV. O incêndio............................ 78 XVI. Diálogo entre João Filopão e o emir Amr ibn Al-As prestes a incendiar a biblioteca....... 80 Notas................................. 95 FONTES 1. Gibbon................................. 103 2. Os diálogos de Amr....................... 108 3. Aristeu atualizado........................ 113 4. Gélio................................... 114 5. Isidoro de Sevilha......................... 117 6. Lívio................................... 122 7. Conjeturas.............................. 127 8. Hecateu................................ 134 9. A biblioteca inencontrável................. 136 10. O soma de Ramsés........................ 149 11. Qades.................................. 153 12. Estrabão e a história de Neleu............... 159 13. A vulgata bibliotecária..................... 168 14. Os incêndios............................. 174 15. Epílogo................................. 177 Sobre algumas personagens históricas........ 181 I A TUMBA DO FARAÓ Sob o reinado de Ptolomeu Sóter, Hecateu de Abdera esteve no Egito. Subiu o Nilo até Tebas, a antiga capital das cem portas, cada uma delas tão ampla — segundo o que constava a Homero — que permitia a passagem de duzentos soldados, incluídos carros e cavalos. Ainda existiam, bem visíveis, os muros do templo de Amon. Muros com 24 pés de espessura, 405 cúbitos de altura, com um perímetro de dezenas e dezenas de estádios. Por dentro, tudo fora saqueado, desde que sobre o Egito abatera-se Cambises, o louco rei dos persas, um verdadeiro flagelo, que até deportara para a Pérsia os artesãos egípcios, pensando em utilizá-los para os palácios de Susa e Persépolis. Um pouco mais adiante, estavam as tumbas reais. Delas restavam apenas dezessete. No vale das rainhas, os sacerdotes mostraram-lhe a tumba das concubinas de Zeus, as nobres princesas consagradas à prostituição antes do matrimônio, em devoção ao deus. Mais além, deparou com um imponente mausoléu. Era a tumba de Ramsés II, o faraó que combatera na Síria contra os hititas. Helenizado, seu nome seria Osimandias. Hecateu entrou. O ingresso era um portal de sessenta metros de comprimento e vinte de altura. Atravessou-o e se encontrou num peristilo com a forma de um quadrado, tendo cada lado cerca de vinte metros de comprimento: o teto era um bloco único de pedra num azul profundo cravejado de estrelas. Esse céu estrelado era sustentado por colunas de aproximadamente oito metros. Mais que colunas, eram, na realidade, figuras esculpidas, uma diferente da outra, todas extraídas de blocos monolíticos. À medida que prosseguia, Hecateu ia anotando a planta do edifício. Agora estava novamente diante de um portal: semelhante ao da entrada, mas totalmente decorado com relevos e dominado por três estátuas, todas elas extraídas de blocos de pedra negra. Entre as três, a maior (a maior estátua existente no Egito, garantiram-lhe os sacerdotes) a tal ponto ultrapassava as outras duas que estas chegavam-lhe aos joelhos. A estátua gigantesca, cujos pés mediam quase quatro metros, representava Ramsés. Aos seus joelhos, de um lado a mãe, de outro a filha. Na sala do céu estrelado, o teto tinha oito metros de altura; aqui, quase se perdia de vista, e a inesperada mudança da altura do céu, de sala para sala, desconcertava ainda mais o visitante. O que particularmente impressionou Hecateu foi que a enorme estátua de Ramsés era extraída de um bloco único, não apresentando sequer um arranhão ou mancha. "Esta obra", anotou, "é admirável não só pelas dimensões, mas principalmente pela técnica com que foi trabalhada e pela natureza da pedra." Na base, havia uma inscrição que Hecateu fez com que traduzissem para o grego: "Sou Ramsés, rei dos reis", dizia ela. E prosseguia um tanto obscuramente: "Se alguém quiser conhecer quão grande sou e onde me encontro, que supere uma de minhas obras". A frase não era unívoca. "Quão grande", obviamente, podia referir-se às dimensões. Tal interpretação podia ser corroborada pelo fato de que aquelas palavras se encontravam justamente aos pés da gigantesca estátua, e de qualquer maneira não destoavam muito da outra curiosidade que o faraó prometia satisfazer: "onde me encontro". Mas "quão grande" também podia ter um valor metafórico, isto é, não se referir à estatura, mas, por exemplo, às "obras" mencionadas logo a seguir. E também a outra expressão, "onde me encontro", exatamente como convite ou desafio a descobrir o sarcófago, dava a entender que sua localização era oculta e permitida apenas sob certas condições. Em todo caso, o visitante curioso, a partir daí, era desafiado, convidado a uma prova. Ela também formulada de maneira ambígua: "que supere uma de minhas obras" (nikãto ti tõn emõn ergõn), isto é, realize — ao que parece — empreendimentos ainda maiores do que os meus. Se tal era a interpretação correta, trata-se essencialmente de uma proibição. A enorme estátua se apresentava ao visitante ainda no início de seu caminho, e o desencorajava na busca do sarcófago. Mas seria a única interpretação possível? Contudo, Hecateu e seus acompanhantes continuaram. Isolada na enorme sala, sobressaía-se uma outra estátua, com cerca de dez metros de altura, representando uma mulher com três coroas. Aqui, o enigma foi-lhe imediatamente esclarecido: era — disseram-lhe os sacerdotes — a mãe do soberano, e as três coroas significavam que fora filha, mulher e mãe de um faraó. Da sala das estátuas passava-se para um peristilo ornamentado de baixos-relevos representando a campanha do rei na Bactriana. Ali, os sacerdotes também deram informações histórico-militares: naquela campanha — disseram eles —, o exército do rei contava com 400 mil infantes e 20 mil cavaleiros, divididos em quatro formações, cada uma delas comandada por um dos filhos do rei. A seguir, elucidaram os baixos-relevos. Mas nem sempre concordavam nas explicações. Por exemplo, diante da parede onde se representava Ramsés empenhado num cerco, tendo ao lado um leão, "uma parte dos intérpretes", anotou Hecateu, "declarou se tratar de um verdadeiro leão, que, domesticado e criado pelo rei, enfrentava a seu lado os perigos nas batalhas; outros, pelo contrário, consideravam que o rei, inquestionavelmente corajoso, mas ao mesmo tempo ávido por louvores a ponto de beirar a vulgaridade, fizera-se representar com o leão para indicar a audácia de sua alma". Hecateu se dirigiu à parede seguinte, onde estavam os inimigos vencidos e os prisioneiros, todos representados sem mãos e sem órgãos genitais: pois efeminados — explicaram-lhe — e sem força perante os perigos da guerra. Na terceira parede estava representado o triunfo do rei retornado da guerra e os sacrifícios por ele realizados em agradecimento aos deuses. Ao longo da quarta parede, por sua vez, destacavam-se duas grandes estátuas sentadas, que a recobriam parcialmente. Lá, bem junto às estátuas, havia três passagens. Este é o único caso em que Hecateu indica explícita e pormenorizadamente o tipo de acesso de um aposento ao seguinte. Por essas três passagens entrava-se numa outra ala do edifício, onde se celebravam, não mais as gestas guerreiras, e sim as obras de paz do faraó. II A BIBLIOTECA SAGRADA Hecateu contou terem lhe explicado o complicado percurso que levava até o sarcófago de Ramsés. Conseguira eludir a proibição do faraó, ou vencera a prova implícita naquela frase aparentemente esconjuratória? Ou será que agora a frase já perdera sua eficácia, e era exposta apenas como curiosidade aos visitantes do mausoléu? Eis seu relato: As três passagens conduziam a uma sala com colunas, construída em forma de odeão, tendo sessenta metros de comprimento. Essa sala estava repleta de estátuas de madeira, representando alguns litigantes com o olhar voltado para os juízes. Os juízes estavam esculpidos ao longo de uma das paredes, em número de trinta, e sem mãos; no meio, estava o juiz supremo com a verdade pendendo do pescoço e os olhos fechados, e no chão, a seu lado, um monte de rolos. Explicaram que essas figuras pretendiam significar com sua postura que os juízes não devem receber doações, e que o juiz supremo só deve ter olhos para a verdade. Prosseguindo, entrava-se num perípato circundado por todos os tipos de vãos, ornamentados com relevos representando a maior variedade de finos alimentos. Ao longo do perípato distribuíam-se baixos-relevos coloridos, num dos quais aparecia o rei oferecendo à divindade, ouro e prata extraídos das minas durante o ano em todo o Egito. Sob esse relevo estava indicado o rendimento total, expresso em minas de prata: 32 milhões. Em seguida havia a biblioteca sagrada, por cima da qual estava escrito LUGAR DE CURA DA ALMA. Seguiam-se as imagens de todas as divindades egípcias, a cada uma das quais o rei oferecia dádivas apropriadas, como se quisesse demonstrar a Osíris e aos deuses inferiores que vivera toda a vida de modo piedoso e justo em relação aos homens e aos deuses. Havia também uma sala, construída suntuosamente, com uma parede que coincidia com a biblioteca. Nessa sala havia um conjunto de mesas com vinte triclínios e as estátuas de Zeus e Hera, e ainda a do rei. Parece que ali estivera sepulto o corpo do rei. Disseram que essa sala possuía, por toda a volta, uma notável série de vãos, onde estavam admiravelmente pintados todos os animais sagrados do Egito. Quem subisse por esses vãos ver-se-ia diante da entrada da tumba. Ela se encontrava no teto do edifício. Nele, podia-se observar um círculo de ouro com 365 cúbitos de comprimento e um cúbito de altura. Nesse círculo, estavam descritos e dispostos os dias do ano, um para cada cúbito: para cada dia, estavam indicados o nascer e o pôr dos astros e os sinais que, segundo os astrólogos egípcios, derivam de tais movimentos. Disseram que esse friso fora depredado por Cambises na época em que se apoderou do Egito. Esta é a descrição de Hecateu na transcrição feita, dois séculos mais tarde, pelo siciliano Diodoro. Portanto, Hecateu, no decorrer da visita, parece ter chegado até a biblioteca. A partir daí, seus acompanhantes apenas descreveram ou fizeram imaginar o restante. De fato, após a biblioteca, suas indicações tornam-se menos precisas. Por exemplo, não se esclarece como é a passagem da biblioteca para a grande sala dos triclínios; diz-se apenas que há uma parede em comum. Mas é a própria natureza da biblioteca que não fica imediatamente evidente: digno de atenção é o detalhe, narrado com grande precisão, de que um relevo — o dos deuses egípcios e do faraó que oferece dádivas — "segue-se" à biblioteca. Tudo isso foi narrado por Hecateu num livro quase romanesco, intitulado Histórias do Egito, que escreveu ao final de sua viagem. Visto que não chegou até nós, temos de nos contentar com aquilo que foi transcrito por Diodoro. Hecateu, em seu livro, mesclou o antigo e o moderno, colocou no mesmo plano a antiga realidade egípcia e a nova realidade ptolomaica, as antigas e as novas normas, vigentes em sua época sob o primeiro Ptolomeu. Numa longa digressão, falou também dos hebreus no Egito e de Moisés, assim tocando num assunto da atualidade na vida do novo reino greco-egípcio. E, para que tudo ficasse ainda mais claro, incluiu em seu relato uma seção inteiramente dedicada a mostrar como os melhores legisladores gregos vieram ao Egito para trazer inspiração e doutrina. Que melhor garantia, pois, da efetiva continuidade entre o antigo e o novo Egito? Seu trabalho foi muito apreciado pelo soberano, que lhe confiou uma missão diplomática. Por conta de Ptolomeu, Hecateu foi a Esparta. ![]() Fig. 1. Ramesseum de Tebas, reconstrução baseada em Diodoro; segundo Jollois e Devilliers Nesse ínterim, seu livro se tornava uma espécie de "guia" de viagem. Em sua época, Diodoro ainda o tratava como tal. Um guia que não deixava de ter algumas surpresas. Numa visita ao mausoléu de Ramsés, nem tudo na descrição de Hecateu ficaria claro. Por exemplo, na explicação dos relevos do segundo peristilo, uma observação poderia parecer um pouco estranha, a menos que se quisesse acreditar num autêntico exagero: como Ramsés poderia ter combatido na Bactriana? E o que seria aquele conjunto constituído por um perípato, uma biblioteca e um refeitório coletivo, que parecia quase um corpo em si na planta do mausoléu? O visitante escrupuloso que ali entrasse teria uma desilusão: não encontraria a sala da biblioteca. |